EUA-2012: O falso debate sobre política exterior - Noticia Final

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quarta-feira, 24 de outubro de 2012

EUA-2012: O falso debate sobre política exterior

A verdade é que o Irã foi declarado estado pária nos EUA, e está sob sanções pesadíssimas, apenas porque perdeu um prazo no processo de apresentar documentos à Agência Internacional de Energia Atômica, AIEA, documentos que, embora com atraso, foram apresentados e considerados regulares. É uma espécie de caso Al Capone (que os EUA condenaram por evasão de impostos – não por seus muitos crimes de assassinato, extorsão, jogo, tráfico etc.) ao contrário, porque o Irã jamais foi acusado de outro “crime” além do “crime” de ter atrasado a entrega de alguns documentos.
Por tudo isso, por que os cidadãos norte-americanos nos deveríamos dar por satisfeitos com um falso debate sobre “táticas” para derrotar um regime suposto-bandido, suposto-criminoso, suposto-hostil e suposto perigosíssimo?
Michael Brenner

O que se aprendeu ontem, do debate entre candidatos à presidência dos EUA, sobre política exterior? Nada de específico, nada que tivesse qualquer conteúdo ou substância. A China sequer foi lembrada durante a primeira hora de debate. Não surpreende – por três razões. São debates mais para apresentação “coreografada” de candidatos, que ocasião para declarações ponderadas (sequer para declarações sinceras!) das posições e ideias de cada um sobre questões internacionais. As palavras são usadas para projetar imagens que ressoem entre os eleitores, ou para “ganhar pontos”, não para ilustrar, para iluminar ou para persuadir pela inteligência. E assim se torna absolutamente impossível tratar, nas circunstâncias desses debates-circos televisionados, com alguma consistência, dos problemas complexos, das complexíssimas negociações e dos reais perigos aos quais está necessariamente exposto quem se proponha como única “potência mundial indispensável”.
Debate Romney (E) versus Obama (D) (22/10/2012) Política Exterior

Essa tendência é ainda mais reforçada, nas eleições de 2012, pela evidência de que nenhum dos candidatos sente-se confortável no trato de assuntos internacionais. Os saberes de Mitt Romney, nessa especialidade, cabem em meia casca de noz; só repete clichês, o que é sinal sempre eloquente de falta de capacidade para tratar temas complexos, baixa inteligência ou desinteresse – e, isso, apesar de já se estar preparando para ser presidente há, no mínimo, seis anos. Dizer que a Rússia seria a maior ameaça que pesa hoje contra os EUA é coisa de cabeça petrificada, que parou no tempo há 30 anos, no mínimo.

Quanto a Barack Obama, o tempo que habitou a Casa Branca deu-lhe a experiência de sobreviver a quatro anos cheios de surpresas e novidades, mas deixou-o absolutamente sem projeto estratégico ou qualquer noção ponderada do que sejam, hoje, os interesses dos EUA. Obama é especialista em escapar, com ginga, dos golpes. Assim prossegue, saltitando sobre a superfície das relações internacionais dos EUA.

Assim também, Obama reproduz o velho padrão das elites políticas norte-americanas, inigualáveis, no planeta, quando se trata de não ver e de ocultar os fracassos norte-americanos (Iraque, Afeganistão), sempre à procura de estrada que não leve a lugar algum, onde as mesmas elites consigam implantar fantasias e delírios novos ou requentados, cujos slogans novidadeiros mascaram a nenhuma novidade e o nenhum rumo (para hoje, inventaram a Guerra Global ao Terror); sempre impulsivas, aquelas elites, convidando para alguma próxima guerra (hoje, convidam para a guerra ao Irã); sempre cegamente confiadas, aquelas velhas elites políticas, na fé cega de que EUAs “excepcionais” cumprem destino traçado por Deus e sempre liderarão o mundo.

Nem Obama nem Romney preocuparam-se com oferecer qualquer detalhe de precisão, qualquer qualificação, qualquer nuance crítica – sequer alguma nuance explicativa! – desse simulacro de visão histórica da história dos EUA que ensina (ria) que os EUA “devem” governar o mundo. Obama, no “Discurso do Estado da União”, em janeiro de 2012, anunciou, sem qualquer atenção aos fatos, que “America is back!” [aprox. “os EUA voltaram ao jogo!” Foi frase cunhada nos governos Reagan (1981-1989) (NTs)]. Esperava, com o anúncio, estabelecer para sempre o seu próprio reinado indiscutível, ‘rei do pedaço’, depois de vencer algumas escaramuças com gangues rivais em becos pelo mundo, todos bem distantes de Washington. E assim continuamos, os EUA, a fazer exatamente a mesma coisa, disputando escaramuças pelos becos do mundo, sempre contra adversários pobres, até hoje. É exatamente o que estamos fazendo hoje. E nenhum dos candidatos soube dizer sequer uma palavra sobre o quanto essa movimentação sem propósito nem rumo, sempre bélica, arranha o status e compromete a influência que os EUA tenham (se ainda tiverem) no resto do mundo.

Obama jamais diz palavra, tampouco, sobre o que o tal “excepcionalismo” significa em termos de mais sacrifícios para o povo dos EUA e outros povos, sobretudo quando seu governo cogita de novas intervenções do Oriente Médio Expandido. Jamais diz palavra, silêncio absoluto, sobre o quanto os norte-americanos teremos ainda de pagar por tantas guerras.

Romney, por sua vez, zomba do presidente pelo suposto pecado mortal de considerar a possibilidade de negociar com governos mais fracos (no caso presente, com o Irã) e dá seu show preventivo de músculos & armamento pesado, e fala de como tem planos para fazer & acontecer contra a China. Mas não diz palavra sobre o $1,2 trilhão do Tesouro dos EUA, bem guardado nos cofres chineses; finge que não existem.

Obama estava obrigado a não dizer mais do que o mínimo do que poderia ter dito, porque ainda carrega a responsabilidade de conduzir as relações externas dos EUA por, no mínimo, mais três meses. Por isso, teve de evitar respostas específicas sobre questões hoje em curso, o que se pode entender.

Mas... e Romney?! Romney deu-se por liberado de qualquer responsabilidade presente ou futura. Sentiu-se livre para dizer o que lhe viesse à cabeça. Sentiu-se livre para criticar Obama por uma suposta disposição para negociar diretamente com os iranianos. Sequer pensou, por um segundo, que qualquer ato do governo Obama nessa direção abriria vasta avenida para negociações futuras, que muito beneficiariam, também, se algum dia acontecerem, algum possível governo Romney.

O que, nesse ou em qualquer outro mundo, levaria alguém a acreditar que o que sai pela boca de Mitt Romney quando fala em público representaria alguma convicção refletida, se Romney é homem que se contradiz e desmente-se, que se desdiz a cada frase, homem capaz de dizer absolutamente qualquer coisa e também o contrário?!

Romney tem mentalidade de investidor/batedor de carteiras, de bucaneiro sem lei, que, hoje, só tem um objetivo: entrar na Casa Branca. Romney porá suas fichas políticas em qualquer buraco que encontre, com ares de lhe render algum lucro, com vistas àquele seu único objetivo.

Bill Keller escreveu na 2ª-feira, no The New York Times, antes do debate, sobre “o que Romney pode dizer, como comandante-em-chefe em que o país pode confiar”. [1]

Aí está, precisamente aí, o xis do problema: para que o eleitor consiga saber se Romney algum dia poderia ser comandante-em-chefe confiável, o eleitor teria de ouvir manifestação clara, objetiva, sem encenações de “midia training”, do pensamento de Romney. A ninguém interessa assistir a manifestações-shows da capacidade de Romney para repetir frases que leia nos jornais ou que o obriguem a decorar, em substituição a qualquer ideia própria que Romney não dá sinais de ter.

Mas o problema é que, nos EUA, já ninguém sabe ver qualquer diferença, nem a importância da diferença entre mentir total e absolutamente aos cidadãos e não mentir, não, pelo menos, tão desmesuradamente quanto Romney: nem quantidades imensas de cidadãos, nem jornalistas afamados, supostos analistas e observadores espertos!

Em campanhas eleitorais, pode estabelecer-se guerra quase suicidária entre o que pense o candidato e o que pensem os conselheiros que o cercam. Mas também pode acontecer de a harmonia-de-repetição ser perfeita, total. Romney optou por cercar-se de toda a caixa de Pandora das pragas que Donald Rumsfeld, antes, oferecera a Rick Perry. São os sócios fundadores da gangue que governou os EUA durante o governo Bush, a mesma gangue que arrastou o país à tragédia e à ruína no Iraque.

E fato é que Romney passou o final de semana trancado com Dan Senor seu principal mentor político de campanha. Senor foi porta-voz de L. Paul Bremmer III na “Zona Verde”, conhecido então como possível sucessor do “Baghdad Bob” e por seus supostos vastíssimos conhecimentos de “política exterior”. [2]

Mas há também razão mais profunda que explica o modo vicioso como toda a campanha eleitoral e os dois candidatos tratam das grandes questões internacionais.

Os dois candidatos partilham a mesma idêntica inabalável certeza de que os EUA devem continuar a agir, pelo mundo, como se fossem a última e melhor esperança para a salvação da humanidade. Porque creem nesse postulado de fé, os dois candidatos dispensam-se do dever de dizer coisa com coisa aos cidadãos e dispensam-se, inclusive, do dever de dizer claramente quais, afinal, seriam os tais “interesses dos EUA” cuja “defesa” tanto custa, em vidas e em dinheiro, ao povo dos EUA. Tampouco se sentem obrigados a conciliar aqueles seus tais ambiciosíssimos interesses, apresentados aos eleitores como se fossem interesses dos EUA, com os limitadíssimos recursos do país. Nem dão qualquer atenção à urgente necessidade de reaprender, para voltar a usá-las, as artes da diplomacia. São artes absolutamente indispensáveis a quem busque a paz e a reconciliação, muito mais que guerras sem fim, miséria sem fim para os norte-americanos e degradação diária, continuada, do mais valioso patrimônio que os EUA algum dia tiveram para mostrar ao mundo: o prestígio da democracia norte-americana e alguma autoridade moral.

Pois nenhum dos dois candidatos, no debate de ontem, deu qualquer sinal de qualquer atenção à dura nova realidade dos EUA. Provavelmente entendem que dizer coisa com coisa e não mentir tão vasta e completamente seria suicídio eleitoral. Além disso, nenhum dos dois refletiu, de fato, sobre qualquer coisa, sobre implicações do que digam ou façam; nem, muito menos, cuidaram de oferecer qualquer pensamento mais sólido aos cidadãos.

Então lá ficaram, os dois candidatos... metendo goela abaixo dos eleitores um amontoado de rematadas tolices; ou só frases feitas, pensadas, exclusivamente, para nada dizerem; e nenhuma conclusão de coisa alguma. Disso se fez o debate de ontem: de nada. Fez-se, sobretudo, de nenhum respeito decente ao pensamento e à inteligência dos cidadãos dos EUA.

É revelador também que o debate tenha começado com conversa sobre o ataque ao consulado dos EUA em Benghazi, Líbia. A questão era encontrar culpados. É fazer da política e da guerra tema de romance ou novela, tratar assuntos de guerra e política como se fossem ficção de entretenimento. Criar suspenses, atrair audiências. Ora essa! Os EUA meteram-se em guerras, literalmente, em todos os pontos mais violentos do mundo, os quais, se já não eram violentos, tornaram-se violentos depois de os EUA armados aparecerem por lá, invadindo e ocupando. Nessas circunstâncias, é claro que norte-americanos correm riscos, podem ser feridos e mortos. Por que alguém esperaria que os norte-americanos que estivessem nos últimos tempos em Benghazi, Líbia, devessem ter ou tivessem algum tipo de imunidade? Não temos imunidade alguma. Muitos norte-americanos estão morrendo nas guerras em andamento. Aí está uma verdade clara, que o debate não trouxe ao palco. Ao contrário: o debate ajudou a escondê-la.

São profundas as implicações práticas de insistir no excepcionalismo dos EUA. No caso do Irã, por exemplo. O fracasso (muito provável) das sanções como instrumento para forçar a República Islâmica a ajoelhar-se e render-se ao que os EUA desejam já praticamente sem dúvida alguma arrastará os EUA para mais guerras – uma guerra cujas repercussões farão Iraque e Afeganistão parecer incidentes sem importância (exceto, como sempre, para os mortos e suas famílias).

Pois nem a ameaça de nova guerra e guerra terrível que pesa sobre os EUA foi suficiente para que um – um só dos candidatos, que fosse, um, pelo menos! – introduzisse, no debate, o tema da paz: os dois candidatos só fizeram repetir e repetir frases feitas sobre “a ameaça iraniana” e o risco de “os mulás” virem a ter bomba atômica. O que se viu no debate foi absoluta concordância a favor de mais guerra – embora haja diferenças “espetacularizadas”, quase que só cenográficas, nas táticas.

É compreensível que assim seja, porque essa foi a visão construída e divulgada para os EUA pela máquina de propaganda dos dois presidentes – de Bush e de Obama – já há uma dúzia de anos. Essa máquina de propaganda domina completamente a imprensa, todos os veículos e meios, os centros de estudos e pesquisas, os think tanks e os políticos em geral. Quando reina a opinião única, praticamente já ninguém se dá conta de que a tal opinião única pode não passar de um amontoado de tolices ou de um amontoado de mentiras.

Debates políticos televisionados têm de ser tratados como coisa mais séria. Também os postulados de fé da opinião única (que é opinião única também entre jornalistas e especialistas acadêmicos) têm de ser objeto de discussão.

Afinal, depois do desastre que foram as “conclusões técnicas” e as “opiniões de especialistas” e as “avaliações jornalísticas” que arrastaram os EUA para o Iraque, já parece mais que justo, adequado e oportuno que os cidadãos exijam melhores debates, que se alimentem de e ofereçam ao público melhores “conclusões técnicas”, melhores “opiniões de especialistas” e melhores “avaliações jornalísticas”. Por que tantos ainda insistem em arrastar os EUA para mais guerra? O que se viu no debate de ontem prova que essa pergunta permanece sem resposta.

Os dois candidatos concordavam 100% com a ideia de que o Irã “é” estado criminoso. Isso é delírio! Não há lei em lugar algum do mundo, nem da ONU nem de qualquer organização reconhecida, segundo a qual o Irã pudesse ser definido como estado criminoso.

Até hoje, o Irã só foi acusado e condenado por uma infração técnica de algumas das obrigações que teria como signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear, quando o Irã deixou de informar a Agência Internacional de Energia Atômica sobre uma etapa de suas atividades nucleares – e eram atividades civis. Logo depois de autuado, o Irã atualizou as informações que devia à AIEA; e sua situação voltou a ser absolutamente regular.

A verdade é que o Irã foi declarado estado pária nos EUA, e está sob sanções pesadíssimas, apenas porque perdeu um prazo no processo de apresentar documentos à AIEA, documentos que, embora com atraso, foram apresentados e considerados regulares. É uma espécie de ‘'caso Al Capone'’ (que os EUA condenaram por evasão de impostos – não por assassinato, extorsão, jogo, tráfico etc.) ao contrário – porque o Irã jamais foi acusado de outro “crime” além do “crime” de ter atrasado a entrega de alguns documentos.

Por tudo isso, por que os cidadãos norte-americanos nos deveríamos dar por satisfeitos com um falso debate sobre “táticas” para derrotar um inexistente regime suposto-bandido, suposto-criminoso, suposto-hostil e suposto perigosíssimo?

Muito melhor do que nos pormos a discutir aquela encenação, é tratarmos de discutir o que se pode ainda fazer para evitar guerra cataclísmica. Entre as poucas possibilidades que ainda restam sempre há a possibilidade de tentar um acordo, em termos que satisfaçam os dois lados e não apaguem do mundo as legítimas preocupações do Irã com sua própria segurança. Por que essa solução não poderia ser sequer citada?! Por que não serviria?!

Ninguém que entenda que líderes de repúblicas democráticas têm o absoluto dever de ser claros e explícitos sobre os porquês e os para quês de arrastarem os EUA para novas guerras que não interessam a nenhum cidadão norte-americano pode declarar-se satisfeito com o que foi impingido ontem à noite a toda a nação norte-americana, como se fosse debate sobre política externa.

redecastorphoto

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